Jornada do atleta profissional, dos membros da comissão técnica e da área de saúde nos clubes de futebol

Certamente os temas que envolvem o Direito Desportivo são apaixonantes, mas, ao mesmo tempo, muito polêmicos e passíveis de serem interpretados de diversas formas. A questão da jornada de trabalho no mundo dos atletas profissionais é um destes temas.

A jornada de trabalho dos atletas passou por momentos de polêmicas no mundo jurídico, haja vista que a Lei nº 6.354/1976 a estabelecia como sendo 48 horas semanais, sem previsão específica de jornada diária e, superior, portanto, ao limite que adveio com a Constituição Federal de 1988, de 8 horas diárias e 44 horas semanais. Com a revogação da Lei nº 6.351/1976 pela Lei 9.615/1998 (a chamada “Lei Pelé”), a partir de 26 de março de 2001 surgiu nova polêmica, haja vista que não houve substituição do dispositivo que tratava especificamente da jornada de trabalho dos atletas. À época, a doutrina se dividiu em duas vertentes: a primeira que entendia que os atletas profissionais, a partir de 26 de março de 2001, não estavam mais sujeitos a qualquer limitação semanal de jornada, em razão da peculiaridade da atividade exercida; a segunda que entendia que os atletas profissionais de futebol e de qualquer outra modalidade estavam sujeitos ao limite constitucional de 8 horas diárias e 44 horas semanais, posto que apenas os trabalhadores domésticos haviam sido excluídos naquele momento da limitação constitucional (conforme antiga redação do parágrafo único do Art. 7º da Constituição).

Com a entrada em vigor da Lei nº 12.395, de 16 de março de 2011, a questão se solucionou parcialmente, já que esta alterou a Lei Pelé, incluindo diversos dispositivos, em especial o Art. 28, §4º, que estabelece:

Art. 28.  A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva, no qual deverá constar, obrigatoriamente:

(…)

  • 4º Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei, especialmente as seguintes:                   

I – se conveniente à entidade de prática desportiva, a concentração não poderá ser superior a 3 (três) dias consecutivos por semana, desde que esteja programada qualquer partida, prova ou equivalente, amistosa ou oficial, devendo o atleta ficar à disposição do empregador por ocasião da realização de competição fora da localidade onde tenha sua sede;                   

II – o prazo de concentração poderá ser ampliado, independentemente de qualquer pagamento adicional, quando o atleta estiver à disposição da entidade de administração do desporto;

III – acréscimos remuneratórios em razão de períodos de concentração, viagens, pré-temporada e participação do atleta em partida, prova ou equivalente, conforme previsão contratual;                  

IV – repouso semanal remunerado de 24 (vinte e quatro) horas ininterruptas, preferentemente em dia subsequente à participação do atleta na partida, prova ou equivalente, quando realizada no final de semana;  

V – férias anuais remuneradas de 30 (trinta) dias, acrescidas do abono de férias, coincidentes com o recesso das atividades desportivas;   

VI – jornada de trabalho desportiva normal de 44 (quarenta e quatro) horas semanais.

 

Conforme se observa da previsão legal, a jornada dos atletas profissionais é limitada a 44 horas semanais, não estabelecendo a lei qualquer limitação diária. Tem-se, portanto, que a previsão legal abre margem de dúvida a respeito da aplicação do limite de 8 horas diárias do Art. 7º, XIII, da Constituição.

Embora a questão não seja pacífica, entendemos que, ao tratar apenas da jornada semanal, a lei optou por não impor limite diário ao trabalho do atleta profissional, em razão das condições peculiares a que se submete o seu contrato de trabalho. Assim, eventuais horas extraordinárias seriam devidas apenas se ultrapassado o limite semanal de 44 horas.

Há, no entanto, posicionamento em sentido contrário, como é o caso, por exemplo, do Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Mauricio Godinho Delgado:

Ou seja, em respeito ao marco constitucional de 1988 deve prevalecer a jornada estipulada em seu art. 7º, XII. Nesse sentido, resta esclarecer ainda que, apesar de o art. 28 da Lei n. 12.395/2011 apenas se referir à duração semanal de trabalho, não resta dúvida de que o padrão diário de trabalho do atleta profissional de futebol também será o de sustentação constitucional, ou seja, oito horas diárias.

O período de trabalho que exceder o limite constitucional de 8 horas diárias e 44 semanais será computado como hora extraordinária, salvo se previsto acordo de compensação de jornada (art. 59, CLT; Súmula n. 376, TST).” (DELGADO, Mauricio Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. Atleta Profissional de Futebol: Breve Panorama do Direito do Trabalho Brasileiro a partir da Vigência da Lei n. 12.395/2011. In: BELMONTE, Alexandre Agra; MELLO, Luiz Philippe Vieira de; BASTOS, Guilherme Augusto Caputo (Orgs). Direito do Trabalho Desportivo: os aspectos jurídicos da Lei Pelé frente às alterações da Lei n. 12.395/2011. São Paulo: LTr, 2013)

Outras controvérsias relativas à jornada do atleta profissional dizem respeito ao período de concentração e aos acréscimos remuneratórios previstos no Art. 28, §4º, III, da Lei Pelé, acima transcrito.

Nesse sentido, o período de concentração se consubstanciaria em tempo à disposição do empregador por parte do atleta e, portanto, estaria sujeito ao pagamento de horas extras? E o que dizer das viagens?

De forma majoritária, o entendimento tanto da doutrina quanto da jurisprudência é no sentido de que a previsão de acréscimo remuneratório para períodos de concentração, viagens, pré-temporada e participação do atleta em partida, prova ou equivalente impediria, ao mesmo tempo, o aumento da remuneração do atleta e o pagamento de horas extras. Nesse sentido, as atividades do inciso III por poderem gerar acréscimo remuneratório, foram excluídas da contagem da jornada semanal do atleta.

Destaca-se, no entanto, que para que não incidam horas extras sobre o período de concentração, entendemos que deve ser observada a limitação legal, ou seja, a concentração que não poderia exceder 3 dias consecutivos por semana, desde que esteja programada qualquer partida, prova ou equivalente, amistosa ou oficial. Ultrapassado o prazo legal, o período excedente deve ser incluído na jornada semanal do atleta e poderá implicar no pagamento de jornada extraordinária.

Outrossim é de se ter em vista que a previsão de acréscimo remuneratório não se trata de uma obrigatoriedade, de modo que, se o contrato de trabalho desportivo não constar com qualquer previsão a este título, entende-se que o salário base ajustado remunerará, além do trabalho propriamente dito, os períodos de concentração, viagens, pré-temporadas e participação em partidas ou equivalentes.

Por fim, é cabível registrar que por força do Art. 90-E da Lei Pelé os integrantes da comissão técnica e da área de saúde, desde que mantenham vínculo empregatício com o clube, estão sujeitos às mesmas regras de jornada previstas aos atletas no parágrafo 4º do Art. 28. E não poderia ser diferente, haja vista que estas pessoas acompanham o dia-a-dia do atleta, inclusive em períodos de concentração, viagens, pré-temporada e participação em partidas, de modo que, por força do princípio da isonomia, devem receber o mesmo tratamento dispensado aos atletas profissionais quanto ao tema.

 

 

Flávia Oliveira, advogada no escritório MKA.

flavia@mka.adv.br